quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Jovem, negra, pobre e analfabeta


Conheci Rosinha há aproximadamente 10 anos. Na época eu havia deixado o interior do estado de São Paulo e me mudado para a capital. Estava feliz por meu novo emprego, pela mudança de cidade y otras cositas más.

Depois de alguns meses, chegou Rosinha. Ela iria trabalhar na limpeza via "Frente de Trabalho". Não tinha carteira assinada e toda seguridade que esta nos dá, tais como férias, 13º salário, seguro desemprego, fundo de garantia... Se faltasse ao trabalho, ainda que por motivo de doença, não receberia a cesta básica mensal. Só tinha 40h semanais a serem trabalhadas, um salário mínimo (R$260,00 ou U$98,00, na época) e nossa sujeira nas salas, pátios, banheiros, cozinhas e afins. 


Mulher, jovem, negra e nordestina. Pensava que era dois ou três anos mais velha que eu. Mas era dois anos mais nova. Com vinte e poucos anos, já gerara quatro filhos. Morava com os três mais novos. O filho mais velho tinha ficado com os avós na terra natal. Sem qualificação para empregos formais, tanto ela quanto o marido recolhiam óleo para fazer sabão e vender. 


Analfabeta. Rosinha foi o adulto mais jovem que conheci que não sabia nem ler nem escrever. Sem nenhum tipo de deficiencia intelecutal, não podia frequentar o EJA Educação de Jovens e Adultos porque o marido não gostava que saísse à noite. Lamentava não poder ajudar seus filhos com as lições escolares. Mas seu sorriso era farto, ainda que tímido.


Após 12 meses de trabalho, seu contrato precário  não poderia ser renovado. A promessa de "qualificação profissional" para os trabalhadores da "Frente" não se cumpriu. Angustiada, nos deixou seu número de telefone para que a contatássemos para faxinas. Foi embora, fazer sabão.


Faxineira. Começou a fazer limpeza esporádica na casas dos trabalhadores que conheceu no serviço da "Frente". Indicada para trabalhar na cidade vizinha, desceu no ponto errado e não conseguiu chegar ao trabalho. Olhava as placas nas ruas. Via mas não lia. Com medo de se perder ainda mais, voltou para casa. Não ganhou pela faxina e gastou o dinheiro com o ônibus.


Beneficiária do Bolsa Família, Rosinha era prova viva do quanto esse recurso faz diferença na vida das pessoas. Se existem pessoas corruptas que recebem a bolsa sem a devida necessidade, pessoas com sérias dificuldades para sobreviver não podem ficar deassistidas. Que se fiscalize mais. Ponto!


Trabalhando também em minha casa, ficamos mais próximas. Minha priminha era da mesma idade que sua filha mais velha. O óleo que minha família usava, quando era reservado para que seu esposo fizesse a retirada e transformasse em sabão. Troquei de aparelho celular e ele se interessou pelo aparelho antigo, daqueles que ainda vinham com um número fixo, sem chip. Seguindo o lema "Reduzir, Reutilizar e Reciclar".


Madrugada de 2008, meu antigo número começa a chamar. Havia se passado dois anos. _Janaína, vá pra delegacia ver Rosinha _ falou uma voz masculina._Quem está falando? Por que Rosinha está na delegacia?_Aqui é o marido da Rosinha. Ela precisa de você. _ E desligou.


Liguei para o número de Rosinha diversas vezes, ninguém atendeu. Depois um número desconhecido me chamava, para que eu explicasse o que queria com Rosinha àquela hora. Era da delegacia.


Troquei de roupa e me dirigi ao 1ºDP da cidade. Era minha segunda vez em uma delegacia. A primeira foi para tirar meu documento de identidade, em minha cidade do “interior do interior” do Paraná. Situação bem distinta desta. Não sabendo como proceder, me sentei na esperança de ser chamada para algum atendimento. Como não aconteceu, me dirigi a um dos funcionários da delegacia, explicando mais ou menos o ocorrido. Me mandaram entrar em uma sala.


Na sala estava a delegada. Mulher também jovem em seu primeiro plantão. Atrapalhada, relatou que não esperava caso tão complexo em seu primeiro dia. Ela me falou que Rosinha estava detida para averiguação. A polícia foi chamada durante a noite pelos vizinhos devido a uma briga do casal. Ao chegar no local, a polícia tomou conhecimento de que o motivo da briga era o estupro recorrente da filha mais velha pelo pai. O marido de Rosinha fugiu e ela foi detida para averiguarem se ela era cúmplice do crime.


Expliquei que era amiga de Rosinha. Que tinha ido a delegacia devido a um telefonema de seu marido, dizendo que ela estava na delegacia precisando de mim. Tive que falar diversas vezes que não sabia onde ele estava. Já Rosinha, estava chorando no canto da sala, sentada em uma cadeira, com os dois filhos menores a seu redor. Só balbuciava "eu não sabia, eu não sabia" entre um soluço e outro. A filha, vítima dos estupros, tinha sido levada para o hospital para fazer exames para “fins legais”.


Após encontrado, seu marido foi preso imediatamente pois era procurado por um outro crime cometido no passado. Descobriu-se que os abusos começaram quando a mãe começou a trabalhar fora, na "Frente". O pai passava as tardes cuidando dos filhos e abusava da mais velha, que na época tinha 10 anos. O segredo era mantido por inúmeros mecanismos, desde dar doces para as crianças menores ficarem brincando do lado de fora do barraco enquanto o abuso ocorria, "mimar" a filha abusada de forma a manipula a manutenção do segredo, até induzir a menina a tomar contraceptivos.


Sem o ex-marido impedindo,  Rosinha finalmente começou a frequentar o EJA, mas não conseguiu dar continuidade. Teve que vender o barraco onde morava porque o ex exigia sua parte. Recebeu inúmeros telefonemas do sistema penitenciário até convencer a assitente social do local que não era mais conjuge do detento e que não tinha interesse em ajudá-lo no que quer que fosse. Com os filhos abrigados na cidade vizinha, aprendeu na marra a se locomover por lá, indo visitá-los e às audiências até que lhe restituíram a guarda.


Jamais pensou em voltar com aquele que lhe trouxe tanta tristeza e promoveu estragos imensos em sua vida e na de seus filhos. Temia que ele voltasse ao convívio e abusasse da filha mais nova, que agora chegava a idade de 10 anos. Certa vez a perguntei sobre quando passou a viver com o pai das crianças. E a resposta foi: "_Aos 13 anos"! E ele era, no mínimo, 20 anos mais velho que ela.


Tudo o que aconteceu após a cena da delegacia, foi ao longo do ano de 2009, quando morei em Moçambique. De lá, pouco pude ajudar. Quando voltei, em 2010, Rosinha ainda estava sem trabalho fixo e voltou a fazer faxina em minha casa. Era monitorada pelo conselho tutelar no cuidado com os filhos. A maior dificuldade é que a filha mais velha não queria frequentar a escola. Mentia, saía escondida nas madrugadas, a maltratava e, por fim, engravidou com 14 anos. Quem queria assumir a criança como filho era o novo namorado, que foi preso por assalto durante a gravidez da adolescente. 


No final de 2011, quando foi morar no litoral, Rosinha conheceu o mar. Com 30 e poucos anos, morando há 60km da praia, nunca tinha posto os pés na água salgada. Não foi a passeio, mas sim me ajudar com a limpeza da nova residência. Porém, antes do sol se pôr nos dirigimos pra orla. Espero que um dia ela possa ir ao mar apenas à passeio.Em 2012, quando assumi a coordenação de um centro de refêrencia para mulheres em situação de violência, reencontrei aquela delegada. Agora ela era responsável por uma DDM Delegacia de Defesa da Mulher. Não se lembrava de mim, mas depois pudemos falar sobre aquele final de 2008, tão marcante em nossas vidas. A delegada entrou pra relação das pessoas queridas.


Escrevo essa lembrança porque nesta semana, ao consultar uma operadora de serviços telefônicos, fui informada que tenho uma linha que está sem uso desde 2009. Achei que era confusão típica dessas empresas, mas depois rememorei os fatos. A linha é do antigo celular, com número fixo, que já apareceu nesta história.


Preciso cancelar a linha telefônica  mas não cancelarei a lembrança por ela desencadeada, pois ainda temos muito que lutar por um mundo mais justo e igualitário; onde Rosinhas tenham condições de vida mais digna com condições para desfrutar das oportunidades que lhes surgirem; onde meninos e meninas não sejam abusados sexualmente, já que os principais abusadores são seus pais, padrastos e outros parentes próximos; onde as mulheres tenham direito a ir e vir, sem se sentirem intimidadas por seus companheiros ou desconhecidos na rua; onde homens e mulheres tenham acesso a trabalho digno e benefícios de redistribuição de renda, quando necessários; onde homens e mulheres que não passem por tanta dificuldade com renda, violência e opressão possam se solidarizar por um mundo melhor e mais justo para todas e todos.


Fonte da Imagem: Grif Maçãs Podres 



quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

A comida da vovó (Gula) 2



Texto originalmente publicado em dezembro de 2009.

No interior do Paraná, em uma cidade que já não conheço ninguém e com o pé quebrado, um dos poucos prazeres que me restam é a gula...
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Posto de lado as consequencias, entrego-me ao meu segundo pecado capital preferido, fazendo desse período algo menos chato. E com a ajuda dos mimos familiares as coisas ficam bem mais fáceis. Ao menos quase sempre...
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Vamos ao causo:
Minha avó, 87 anos, veio me fazer a visitinha diária. Chegou toda faceira e contou:
“_Ah, Já, sabe o que fiz hoje pra janta? Banana verde!”
“_ Ai, que delícia! Trouxe um pouco pra mim, vó?”
“_Não, fia. Nem sabia que você gostava... Onde você comeu?”
“_Vó, claro que gosto! A senhora mesmo fez várias vezes... Até esses dias lá em Moçambique eu comentei que tava com vontade de comer!”
“_É? Hum... Achei que não fazia desde os tempos da Baixada da Areia...” - (Ou seja, há uns 20 anos atrás, no sítio onde ela morava e onde passei parte da infância)
“_ Ai, vó, claro que não!”
“_ Aaaah, fia, que pena que eu não trouxe. E e vô não pode trazer porque já tá descansando... Hoje levantou cedo pra carpir umas datas!”
“_Mas nem é pro vô trazer, tadinho! Amanhâ peço pro meu irmão ir buscar pro almoço!”
A vó vai embora.
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Cinco minutos depois chega o vô ,79 anos, trazendo a comida, dizendo que bom é comer no dia que fez! Todo bonitinho e feliz com o mimo que faz, deixa a comida na cozinha e diz que não vai ficar mais porque ta cansado!
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Passada uma hora, a fome chegou! Fui manquitolando até a cozinha procurar o meu jantar de comidinha-roceira-especial! Vi uma vasilha por cima do fogão, olhei: uma coisa gosmenta, não era aquilo! Nas panelas: arroz, feijão... Olhei no micro ondas: vazio! Talvez na geladeira: nem por isso!! Na falta de imaginação de onde mais procurar (na casa dos outros, só olhamos em lugares mais óbvios) perguntei:
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“_ Mãe, você viu onde o vô deixou meu abafadinho de mamão?”
“_ Mamão? Não é mamão, é banana!”
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Aaiiii... Péssima noticia! Na hora do anuncio da comida pela avó, meu desejo trocou as frutas...
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Constatei que a coisa gosmenta era o meu quitute: feito pela avó velhinha, trazido pelo avô cansado, que a neta teimou que gostava!
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O que mais eu poderia fazer além de enfrentar honradamente a situação? Esquentei a gogoroba, coloquei três colheres bem cheias no prato vazio (pra não estragar nada que entrasse em contato com ela), peguei uma fatia de pão e botei pra dentro. Tu-di-nho.
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Minha mãe, sentada na minha frente não acreditava no que via. Eu, bravamente comendo aquilo, como se estivesse em um treinamento pra combate ou numa prova de sobrevivência!
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Noutro dia a avó:
“_ Já, matou a vontade de comer a banana verde?”
“_ Ah sim, tava ótimo. Mas prefiro mesmo mamão!”
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Na boa, comer a sopa de banana era o que eu mandaria qualquer criança fazer, se ela estivesse em meu lugar.
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1) Refogado de mamão verde. Fonte da foto e receita, clique aqui.
2) Sopa de banana verde bacanuda. Fonte da foto e receita, clique aqui.
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segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Janaínas e Iemanjás Musicais II

Semana passada fiz uma postagem, de cunho bastante afetivo, onde contava um pouco a descoberta dos significado do meu nome e as melodias que deram mais sentido a ele, com o passar dos anos.

Ocorre que muitas canções sobre Janaínas ficaram de fora. Alguns amigos e amigas chamaram atenção para o fato e expliquei que não foi mero esquecimento. De fato escolhi algumas naquele momento e deixo, hoje, aqui outras tantas.

CAMINHOS DO MAR (Dorival Caymmi)
Yemanja Odoiá Odoiá
Rainha do mar
Yamanja Odoiá Odoiá
Rainha do mar

O canto vinha de longe
De la do meio do mar
Não era canto de gente
Bonito de admirar

O corpo todo estremece
Muda cor do céu do luar

Um dia ela ainda aparece
É a rainha do mar

Yemanja Odoiá Odoiá
Rainha do mar
Yemanja Odoiá Odoiá
Rainha do mar

Quem ouve desde menino
Aprende a acreditar
Que o vento sopra o destino
Pelos caminhos do mar

O pescador que conhece
as historias do lugar
morre de medo e vontade
de encontrar Yemanja

Yemanja Odoiá Odoiá
Rainha do mar
Yemanja Odoiá Odoiá
Rainha do mar



CANTO DE YEMANJÁ (Vinicius de Moraes/ Badem Powell)
Vem do luar no céu
vem do luar
no mar coberto de flor, meu bem
de Yemanjá
de Yemanjá a cantar o amor
e a se mirar
na lua triste no céu, meu bem
triste no mar

Se você quiser amar
se você quiser amor
vem comigo a Salvador
para ouvir Yemanjá
a cantar na maré que vai
e na maré que vem do fim
bem do fim do mar
bem mais além

Yemanjá, Yemanjá
Yemanjá é dona Janaína que vem
Yemanjá Yemanjá
Yemanjá é muita tristeza que vem



RAINHA DO MAR (Dorival Caymmi)
Minha sereia é rainha do mar
Minha sereia é rainha do mar
O canto dela faz admirar
O canto dela faz admirar

Minha sereia é moça bonita
Minha sereia é moça bonita
Nas ondas do mar
Aonde ela habita

Ai tem dó
De ver o meu penar
Ai tem dó
De ver o meu penar




CAMAFEU (Candeia)
Camafeu
Cadê Maria de São Pedro?
Foi passear
E os passeios de Maria fez a Bahia chorar
Maria foi lá pra longe
Maria não vai voltar
Mas deixou sua família
Pra seu nome cultuar

Lalá i lá, Lalá i lá
Lalá i lá, Lalá i lá
É Janaína
Janaína, Janaína
Janaína, Janaína

Camafeu cadê Mestre Pastinha?
Tá com oitenta pra lá
Ainda joga capoeira
Com quem tem vinte pra cá
E por onda de alaqueto
Não precisa perguntar
Encontrei com menininha
Perto do seu casuá
Lalá i lá, Lalá i lá
Lalá i lá, Lalá i lá
É Janaína
Janaína, Janaína
Janaína, Janaína

Camafeu, Camafeu cadê você?
Estou em todo lugar
Só vendendo bugigangas
No mercado popular
Se o mercado está fechado
Pego o barco e vou pescar
Samba no mar, Samba no mar
Samba no mar, Samba no mar

Samba no mar da Bahia
Samba no mar Engenho Velho
Samba no mar Manzurica
Samba no mar Edomarica
Samba no mar Mestre Branca
Samba no mar Corridó
Samba no mar Odilon
Samba no mar, Samba no mar
Samba no mar, Samba no mar

Samba no mar da Bahia...



JANAÍNA (Otto)
Disse um velho orixá pra Oxalá
Pra acreditar
Pra não temer, temer, temer
Desses tempos verdadeiros
Tempos maus

Dia 2 de fevereiro
Dia de Iemanjá
Vá pra perto do mar
Leve mimos pra sereira
Janaína Iemanjá
Pra perto do mar
Leve mimos pra sereia
Janaína Iemanjá

Havia rosas no mar
Havia ondas na areia

Lá em Rio Vermelho
Em Salvador
Vamos dançar
Dia 2 de fevereiro
Dia de Iemanjá
Leve mimos pra sereira
Janaína Iemanjá

Disse um velho orixá pra Oxalá
Pra não temer
Pra não temer
Dia 2 de fevereiro
Festa lá no Rio Vermelho
Em Salvador vamos dançar
Leve mimos pra sereia
Janaína Iemanjá

Havia rosas no mar
Havia ondas na areia
Vá brincar no Rio Vermelho
A festa de Iemanjá
Salvador está em festa
Vou cantar

Vou cantar, ah
Pra saudade sereia
Vai brincar na areia
Para acreditar

Pra saudade sereia
Vista de branco
Dia de lua cheia



JANAÍNA (Rubens Aredes)
Janaína da Barraginha é moça bonita
Morena dos Olhos claros levantava cedo todo dia
vinha trabalhar na feira voltava e se assentava
No sofá em frente à caixa, no sofá em frente à caixa

Queria conhecer seus ancestrais
Misturou guaraná
Com ayahuaska
Conheceu os segredos do pajé e do Babalaô

Janaína da barraginha é moça forte
Mulher da raça, da lata, do preto e da cachaça
Misturou catimbó com afoxé
E fez o Egum descer do Orum

Janaína fez descer Iaci
Índia do mato
Amante de brancos
Amar rada na castanheira
morta com frieza
Extinta por inocência
Janaína fez descer Ajê Xalugã
Cidadão livre do Quilombo dos Palmares
No sofá em frente à caixa


JANAÍNA(Biquine Cavadão)
Janaína acorda todo dia às quatro e meia
E já na hora de ir pra cama, janaina pensa
Que o dia não passou
Que nada aconteceu

Janaína é passageira
Passa as horas do seu dia em trens lotados
Filas de supermercados, bancos e repartições
Que repartem sua vida

Mas ela diz
Que apesar de tudo ela tem sonhos
Ela diz
Que um dia a gente há de ser feliz
Se deus quiser.....

Janaína é beleza de gestos, abraços,
Mãos, dedos, anéis e labios
Dentes e sorriso solto
Que escapam do seu rosto

Janaína é só lembrança de amores guardados
Hoje é apenas mais uma pessoa
Que tem medo do futuro- que aconteceu? -
Se alimenta do passado

Mas ela diz
Que apesar de tudo ela tem sonhos
Mas ela diz
Que um dia a gente há de ser feliz

Já não imagina
Quantos anos tem
Já na iminência
De outro aniversário
Janaína acorda todo dia às quatro e meia
Já na hora de ir pra cama, Janaína pensa
Que o dia não passou
Que nada aconteceu



Janaína Argentina (Jorge Ben Jor)
Lá vem Janaína argentina
Por isso quando ela passar
Ninguém mexe que tem dono
Está comigo
Pode olhar, mas sem tocar

Por isso quando ela passar
Ninguém mexe que tem dono
Está comigo
Pode olhar mas sem tocar

Janaína Argentina
Mulher, doce menina
Mimosa, cheirosa, bonita e gostosa,
O perigo a flor da pele
Um prazer constante,
uma aventura, uma aposta deliciante

Por isso quando ela passar
Ninguém mexe que tem dono
Está comigo
Pode olhar mas sem tocar

Janaína argentina
Mulher, doce menina
Deixa ela desfilar
Deixa ela jogar
Deixa ela se soltar
Deixa ela brincar
Deixa ela passear
Deixa ela viajar
Deixa ela ser feliz
Deixa ela dançar
Deixa ela me amar


Imagem disponível em: www.cozinhaafetiva.com.br

terça-feira, 29 de julho de 2014

Janaínas e Iemanjás Musicais

Costumo dizer que uma das vantagens de se chamar Janaína é a boa quantidade de música com essa referência. Refiro-me especificamente à MPB- Música Popular Brasileira e sua vizinhança.

Quando criança, Tio Negão nos encantava nas noites da roça. Em baixo da Pata-de-vaca (Bauhinia variegata), iluminada pela luz da lua ou da casa mais a frente, nosso tio avô nos contava seus causos para fazer rir ou sentir medo. E entre uma coisa e outra, as vezes me dizia assim: “_Sabia que Janaína é o nome de uma sereia negra?”

Sim, eu sabia porque ele já havia me falado outras tantas vezes. E nesta única frase cabia muita coisa. Cabia sereia, cabia negra, cabia saber. Não precisava prosseguir com mais detalhes. Nunca fez falta que não contasse mais sobre “minha sereia”. Tudo já estava lá para minha imaginação.

Quando cresci e meu repertório musical se ampliou para além das deliciosas cantigas infantis e modas de viola de casa, soube também que a tal sereia era Yemanjá, um importante Orixá das religiões de matrizes africanas no Brasil.

Já na faculdade, havia um professor, José Augusto Pontes, que anunciou na aula inaugural que dali pra frente, toda vez que chegasse a sala, contaria o significado do nome de dois alunos. "_Iemanjá: Rainha do mar, protetora das mães e das esposas". Foi assim que ele fez saber a mim e à turma sobre Janaína.
...
A vontade de escrever esta post foi conhecer Kirsten, uma querida-recém-apresentada-a-mim pelo amado Alê d'Ilê, durante nosso último passeio à Porecatu. Ela me disse que há anos atrás chamou sua filha por Janaína após ver este nome escrito em um ônibus no norte do país, lá pelas terras da Amazônia e suas águas. Penso que é um presente imaterial. Gosto assim.

Por aqui, deixo algumas letras, vozes e "vídeos para ouvir", já que alguns são mesmo compostos estritamente por áudios. Apenas? Não, Música nunca é "apenas".

Você pode ler e ouvir outras Janaínas em http://devaneiosecompanhia.blogspot.com.br/2014/08/janainas-e-iemanjas-musicais-ii.html

QUEM VEM PRA BEIRA DO MAR (Dorival Caymmi)
Quem vem pra beira do mar, ai
Nunca mais quer voltar, ai
Quem vem pra beira do mar, ai
Nunca mais quer voltar
Andei por andar, andei
E todo caminho deu no mar
Andei pelo mar, andei
Nas águas de Dona Janaína
A onda do mar leva
A onda do mar traz
Quem vem pra beira da praia, meu bem
Nunca mais quer voltar


BANZO (Itamar Assumpção)
Às margens do rio Sena
Me lembro do Amazonas
Da minha raça morena
Bordunas e pés de cana
Das procissões das novenas
Das praias com sua dunas
Penha, Vila Madalena
Dos Paiakans, dos Jurunas
Lembro Xangô, Janaína
Tupã, Roraima, Itabuna
Dos Brancos cá Caraíbas
Paris me lembra Criciúma
Porto Alegre, tri Curitiba
Gurias Loiras, morenas
Me lembra rio Paraíba
Pará,Paraná, Paranapanema
Aqui e lá há Lagunas
Mas não há lá Iracemas
Mas lembro que a cobra fuma
Na França ou Ipanema
Remember da minha tchurma
Piquet, Fittipaldi e Senna
São Paulo, usina de Furnas
Umãpe xe raperana*
*onde será o meu caminho? (tupi)



MINHA SEREIA (Joyce)
Ela vinha como um sol
Tão bonita de se olhar
Me pegava a mão
Dizia: Não tema não
Ela me ensinava a nadar
E eu ali naquele azul
Sem saber como explicar
Fui bem fundo lá
Que nem dá pra imaginar
Sempre me deixando levar
Me ensina a fazer renda, sereia
Me ensina a namorar
Me guarda em tua saia
Que eu quero na praia me molhar
Minha mãe falou pra mim
Meu menino, o que é que há
Que nem dorme mais
Que é que faz pra te agradar
Que você só fica a delirar
Ó mãe eu estou pensando na vida
Pensando em me casar
Casar com uma sereia
Iara, Janaína, Iemanjá
Só que quando dei por mim
Ela já não estava lá
Me acenou adeus, mergulhou, partiu com os seus
Foi morar no fundo do mar



LENDA DAS SEREIAS (Vicente / Dionel / Veloso)
Oguntê, Marabô
Caiala e Sobá
Oloxum, Ynaê
Janaina e Yemanjá
São rainhas do mar

Mar, misterioso mar
Que vem do horizonte
É o berço das sereias
Lendário e fascinante

Olha o canto da sereia
Ialaó, oquê, ialoá
Em noite de lua cheia
Ouço a sereia cantar
E o luar sorrindo
Então se encanta
Com as doces melodias
Os madrigais vão despertar

Ela mora no mar
Ela brinca na areia
No balanço das ondas
A paz, ela semeia
Ela mora no mar
Ela brinca na areia
No balanço das ondas
A paz, ela semeia

Toda a corte engalanada
Transformando o mar em flor
Vê o Império enamorado
Chegar à morada do amor

Oguntê, Marabô
Caiala e Sobá
Oloxum, Ynaê
Janaina e Yemanjá
São rainhas do mar



IEMANJÁ RAINHA DO MAR (Pedro Amorim)
Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Dandalunda, Janaína
Marabô, Princesa de Aiocá
Inaê, Sereia, Mucunã
Maria, Dona Iemanjá

Onde ela vive?
Onde ela mora?
Nas águas
Na loca de pedra
Num palácio encantado
No fundo do mar

O que ela gosta?
O que ela adora?
Perfume
Flor, espelho e pente
Toda sorte de presente
Pra ela se enfeitar

Como se saúda a Rainha do Mar?
Como se saúda a Rainha do Mar?
Alodê, Odofiaba
Minha-mãe, Mãe-d'água
Odoyá!

Qual é seu dia
Nossa Senhora?
É dia dois de fevereiro
Quando na beira da praia
Eu vou me abençoar

O que ela canta?
Por que ela chora?
Só canta cantiga bonita
Chora quando fica aflita
Se você chorar

Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Pescador e marinheiro
Que escuta a sereia cantar
É com o povo que é praieiro
Que dona Iemanjá quer se casar


terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Guarujá, a praia e o lixo



Não trabalho na mesma cidade onde moro, assim, este é um diálogo que acontece ao menos uma vez na semana durante o verão:
_Onde você mora?

_No Guarujá.
_Nossa, que bacana! Você deve curtir muito a praia com esse calor.
_ Errr... Às vezes... _ e tento cortar o assunto por aqui.

Isso porque, durante a temporada, o Guarujá se assemelha a uma grande lata de lixo. E isso não é nenhum exagero.
Moro por aqui há quase três anos. E o lugar que tantos conhecem (conheciam?) pelas belezas naturais, hoje se destaca devido à sujeira.

Em um domingo de manhã, do verão de 2013, aconteceu de eu ir caminhar com as cachorras na orla da Enseada. Após dois quarteirões pela calçada à beira mar voltamos pra casa. O lixo jogado pelo chão era tanto, que dava nojo de continuar. Não se passeia em lixões. Quando muito, trabalha-se, em um serviço penoso. O cheiro podre, sacolas voando e urubus espreitando não me pareceram uma boa maneira de começar o dia de folga.

Nesta temporada a tragédia se repete. Várias foram as matérias que retrataram a situação das praias: Imundas. Com títulos bem ilustrativos tivemos Crianças brincam
perto do lixo em praia do Guarujá” no Estadão; “Banhista disputa lugar com lixo nas areias de Guarujá” na Folha SP e “Lixo acumulado fica preso em pedras de ilha em Guarujá” no G1, para citar alguns. Não é implicância minha.

A prefeitura respondeu nas reportagens que o lixo é recolhido uma vez ao dia e que varrem a praia por três vezes. Diante da situação, obviamente é pouco. E há anos!

O lixo dos quiosques são colocados em sacos plásticos e depositados no passeio junto à Avenida Miguel Estéfno. Sorte dos cachorros que vivem na rua, que não tem nenhuma dificuldade para rasgar os recipientes para se alimentar. Todavia, consequentemente, espalharam a sujeira pela calçada. Lixeiras suspensas seria uma solução bem simples.

Onde descartar uma lata de refrigerante, um palito de sorvete ou um recipiente de batatas fritas? Nas lixeiras azuis que existem na calçada beirando à avenida. Sim, elas existem, só que muito pequenas para a demanda dos passantes e muito longe de quem curte um banho de mar ou sol. Sem latões os banhistas descartam tudo na areia da praia. Também atitude recorrente dos atendentes de quiosques que, ao limpar as mesas, jogam canudos, guardanapos e outras miudezas no chão.


Apenas latas de alumínio não sobram na areia. Pessoas passam para recolhê-las, fazer uma renda e, quiçá, tomar o que sobrou de cerveja. Mesmo prestando este serviço indireto à comunidade, homens e mulheres que recolhem latas são tratadxs de maneira vergonhosa:  xs freqüentadorxs da praia atiram as latas na areia, para que sejam pegas. Qual a grande dificuldade de entregar as mesmas, mão na mão, quando xs catadorxs passam?

Ontem, ao entardecer, caminhava pela orla da Enseada. Fiz o registro das imagens dessas imagens porque é impossível fingir que isto não acontece. Em breve o mar subiria e varreria tudo aquilo para dentro de si.

Não posso dizer que não existem bons momentos. Ontem a única felicidade foi encontrar o grupo “Percutindo Mundos” se apresentando na orla. A banda é caiçara e, entre tantos sons, também cantou e dançou o mar. Mar que à esquerda do palco agonizava pelo mau uso.
O que se vê no Guarujá é a pouca infraestrutura que o local tem para receber a população flutuante que gira em 1,5 milhão ano. Já a população fixa, soma 290 mil habitantes.

Claro que turismo pode ser bom. Ma isso desde que o lugar eduque o turista e dê condições para que parte da população local viva do turismo e, a outra parte, sobreviva com dignidade apesar do turismo.


O lixo não é a única questão. Por aqui parece não existir leis de trânsito e de silêncio noturno na temporada. Ah, também presume-se que xs moradorxs sejam MUITO ricxs , dados os preços exorbitantes de janeiro à janeiro. Mas isso já é conversa para outra postagem.

LINKS PARA COISAS QUE CITEI:

Percutindo Mundos: http://percutindomundos.blogspot.com.br

Estadão, M.R., Crianças brincam perto do lixo em praia do Guarujá: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,criancas-brincam-perto-do-lixo-em-praia-do-guaruja,1114805,0.htm

Folha de São Paulo, Fabrício Lobel: Banhista disputa lugar com lixo nas areias de Guarujá, no litoral de SP: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/01/1397332-banhista-disputa-lugar-com-lixo-nas-areias-do-guaruja-no-litoral-de-sp.shtml

G1 Santos, Aldo de Aguiar Falleiros: Lixo acumulado fica preso em pedras de ilha em Guarujá, no litoral de SP: http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/vc-no-g1-tv-tribuna/noticia/2013/12/lixo-acumulado-fica-preso-em-pedras-de-ilha-em-guaruja-no-litoral-de-sp.html

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O "T" da Questão


O "T" da Questão (Visibilidade Trans)

Embora a comunidade LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) tenha conquistado mais visibilidade e respeito nos últimos anos, as pessoas trans (principalmente as travestis, mulheres transexuais e outras que expressam uma identidade de gênero feminina) continuam enfrentando o desrespeito cotidiano de direitos tão básicos como o de serem chamadxs pelo nome que escolheram para si e utilizarem espaços (como banheiros) destinados ao gênero com o qual se identificam. Tal desrespeito, somado a violências ainda mais explícitas, afasta muitas destas pessoas da família, da escola e do mercado formal de trabalho.

Porém a população trans brasileira dá continuidade com cada vez mais força a uma luta iniciada há décadas e batalha pelo respeito ao direito de cada pessoa ter respeitado seu direito de autodeterminação, sem ser patologizada, discriminada ou agredida por não expressar seu gênero da forma como a sociedade dominante decidiu ser a mais adequada.

Na semana do 29 de Janeiro, Dia Nacional da Visibilidade Trans, nos perguntamos: Qual é o "T" da questão? Para nos responder o Coletivo Contra Maré convida para um debate com:
  • Daniela Andrade:  responsável pelo blog www.alegriafalhada.blogspot.com , co-responsável pela página Transexualismo da Depressão, colaboradora no site www.bulevoador.com.br e co-criadora do site Transempregos, que conecta profissionais trans a empresas que querem contratá-lxs;
  • Hailey Kaas: responsável pelo blog www.generoaderiva.wordpress.com e co-responsável pelo site www.transfeminismo.com;
  • Léo Moreira Sá: ator, iluminador, músico, protagonista da peça de teatro "Lou & Leo", que conta sua jornada enquanto homem transgênero, e diretor-fundador da Associação Brasileira de Homens Trans.

DEBATE: Visibilidade Trans- O T da Questão
Dia: 01/02/2014 (sábado)
Horário: 18h
Local: Associação Cultural José Martí
Endereço: Rua Joaquim Távora, 217. Vila Mathias. Santos - SP

O evento é organizado pelo Coletivo Contra Maré, um movimento social na luta contra a homo/lesbo/bi/transfobia e toda e qualquer forma de opressão. Através de atividades de formação, debates, articulações e outros baphos mais, lutamos pela diversidade sexual e liberdade de identidade de gênero. Um bando de bicha, bi, sapatão e trans (e o baile todo) afim de fazer revolução, remando contra a maré de opressão da heterosexualidade como regime político/econômico/social. 

Curta Coletivo Contra Maré no Facebook e some conosco! https://www.facebook.com/col.contramare?ref=ts&fref=ts

Página do evento no face: https://www.facebook.com/events/186668094875921/?fref=ts


terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Para que um 29 de janeiro¹?

Aqui não há teorias sobre o surgimento de datas.
Melhor que ler é viver, ouvir, ver, estar.
Mas como muitos não estavam, escrevendo empresto meus olhos, ouvidos e alguns pensamentos:

Era por volta das 22h do dia 27 de novembro de 2013. Acabava de ocorrer a histórica posse do Conselho Estadual dos Direitos da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Estado de São Paulo.

Histórica porque foi a primeira, com direito a eleições diretas, regionalizadas e por seguimento. Mas o que presenciaríamos a seguir, se não histórico, era, ao menos, inacreditável naquele contexto.

Saindo da câmara municipal de São Paulo, após o coquetel da posse, as pessoas se aglomeravam em frente ao prédio para trocar suas últimas impressões sobre o evento, combinar carona para o lugar de origem e outras miudezas. Eis que em meio ao zumzumzum ouve-se gritos. E choro.

Caminhei em direção à confusão. Abro espaço e passo. Queria verificar o que estava acontecendo.  E quando vi, ouvi, senti a cena, levei alguns segundos para acreditar:

Na calçada estavam dois conselheiros recém empossados. Eles em pé, cabeça erguida, gritavam com uma jovem trans, apontavam para ela.
Ela, acuada, cabisbaixa, sentada na floreira que enfeita as grades da “casa do conselho” de antigamente, ou da “casa do povo” dos atuais otimistas. Chorava.

O gênero masculino acusava. O gênero feminino calava.
Como não intervir?
_Ela é louca _dizia “um”².
_Uma viciada _ dizia “outro”.

Argumentei que aquilo era violência. Pedi que parassem de gritar. Que aquela cena era absurda, que a moça estava sendo constrangida, acusada e ofendida. Que aquela exposição era desnecessária...
 _Ofendido fiquei eu_ aos berros retrucou “um” _ pois me buscaram no meio da cerimônia porque ela estava me chamando ³.
_Eu só estou pedindo para que parem de gritar! _ falei.

_Você não a conhece, é uma viciada em hormônios. Saiu e foi ali comprar_ dizia “outro” apontando para o lado oposto da rua.
_Se você quiser eu mando o prontuário dela pro seu email _ falou “um”_ aí você vai conhecer toda a história dela.
_Quando eu quiser saber da história dela, quem me contará será ela e não vocês, que gritam ao quatro ventos ou propõem emails com prontuário alheio_ respondi, pensando que acesso era aquele que “um” tem a prontuários...

_Está vendo “um”_ disse "outro" se dirigindo ao amigo_ essa aí só quer saber de "clinicar", não se interessa em saber o que acontece com as pessoas, não quer saber de nada e fica se intrometendo!

Incrédula, me afastei. Não havia possibilidade de interlocução...
E os gritos se transformaram em vozes altas e foram se dispersando as declarações absurdas, no meio do Viaduto Jacareí, nº 100, da cidade de São Paulo.

Naquela noite, eu e outras tantas pessoas, fomos violentadas. Tanto quem teve sua história (?) espalhada para estranhxs quanto quem foi submetidx a essa cena de violência. Violência psicológica devido ao constrangimento e humilhação. Violência moral devido a difamação.

A reunião na câmara, que era para ser apenas de comemoração ao nascimento de um conselho de direitos, foi cenário da exposição da vida íntima de uma pessoa. Pessoa esta que pertence a uma das populações mais vulneráveis que temos notícia na atualidade: a população de travestis e transexuais.  Afinal, eu que nunca troquei meia palavra com aquela moça, hoje, tenho idéias, verdadeiras ou não, de que ela ainda é uma adolescente, tomava hormônios de 4 em 4 horas, está sob a guarda do Estado e um dia foi “ajudada” por aqueles que estavam a ofendendo.

No dia 27 de novembro de 2013, também tivemos uma demonstração do machismo vigente no seio na comunidade LGBT: dois homens do gênero masculino violentaram uma trans do gênero feminino em público. 
Relato o que vi, mas eu não estava sozinha!

Infelizmente coisas assim vão continuar acontecendo enquanto os homens gays e bi não enxergarem que o que alimenta a homofobia é o machismo; enquanto xs machistas não perceberem que o machismo também xs oprime; enquanto xs oprimidxs não descobrirem que elxs é que dão poder ao opressor; enquanto as pessoas não perceberem que somos todxs iguais, apesar deste sistema que ensina que umas pessoas são melhores que as outras, que tudo é uma questão de “mérito”, de “escolha”, de “sorte”,  de “destino”, ou seja lá o que for que tira a responsabilidade coletiva (minha, sua e deles) dos rumos que as pessoas e a nossa sociedade toma.

Não sou otimista. Creio que a humanidade não deu certo, e nem dará! Mas podemos lutar para ter alguns bons exemplos de exceção, que obviamente serão para confirmar a regra anterior. 
Devaneios? Companhia? 
...
(1) Dia da Visibilidade Trans

(2) Não cito nomes porque esta postagem deseja gerar reflexão e não fazer uma denúncia. No mais, como já diz o subtítulo do blog devaneios são devaneios...

(3) No outro dia pela manhã fiquei sabendo por outras moças trans que o “um” foi chamado durante a cerimônia de posse porque a garota estava trancada no banheiro e ameaçava se matar, saltando da janela d prédio. Inúmeras pessoas já haviam tentado em vão que ela abrisse a porta de onde estava. Contaram-me ainda que “um” chegou na porta do banheiro, fez-lhe uma ameaça e ela imediatamente abriu a tal porta. Essa parte eu não (ou)vi, apenas ouvi dizer. Porém, seja lá como for, uma pessoa que está ameaçando se matar durante a posse de um conselho de direitos está de fato em sofrimento e pedindo ajuda. Não é motivo sequer para usarmos a palavra “incômodo”, quem dirá motivo para violenta-la ainda mais, no privado ou no público.