O texto abaixo era um rascunho dezembro de 2011, quando pacientemente digitei os trechos deste conto para vocês. Mas naquele dezembro, algo estava travando meu computador que, por fim, veio a "morrer". Assim, não voltei mais a isso. Até agora.
O Embondeiro Que Sonhava Pássaros
[Mia
Couto, Cada Homem é uma Raça]
Esse homem sempre vai ficar de
sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em
verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país não era a vida. Talvez, por
razão disso, ele habitasse com cautela de um estranho. O vendedor de pássaros
não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro.
Todas manhãs ele passava nos
bairros dos brancos carregando suas enormes gaiolas. (...) _Mãe, olha o homem
dos passarinheiros!
E os meninos inundavam as ruas.
As alegrias se intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças. O
homem puxava de uma muska (1) e harmonicava sonâmbulas melodias. O mundo
inteiro se fabulava.
Por trás das cortinas, os colonos
reprovavam aqueles abusos. Ensinavam suspeitas aos seus pequenos filhos -
aquele preto quem era? Alguém conhecia recomendações dele? Quem autorizara
aqueles pés descalços a sujarem o bairro? Não, não e não. O negro que
voltasse ao seu devido lugar. Contudo, os pássaros tão encantantes
que são - insistiam os meninos. Os pais se agravavam: estava dito.
Mas aquela ordem pouco seria
desempenhada. Mais que todos, um menino desobedecia, dedicando-se ao misterioso
passarinheiro. Era Tiago, criança sonhadeíra, sem outra habilidade senão
perseguir fantasias. Despertava cedo, colava-se aos vidros, aguardando a
chegada do vendedor. O homem despontava e Tiago descia a escada, trinta
degraus em cinco saltos. Descalço, atravessava o bairro, desaparecendo
junto com a mancha da passarada. O sol findava e o menino sem regressar. Em
casa de Tiago se poliam as lástimas:
_Descalço, como eles.
O pai ambicionava o
castigo. Só a brandura materna aliviava a chegada do miúdo, em plena
noite. O pai reclamava nem que fosse esboço de explicação:
_Foste a casa dele? Mas esse
vagabundo tem casa?
A residência dele era um
embondeiro, o vago buraco do tronco. Tiago contava: aquela era uma árvore muito
sagrada, Deus a plantara de cabeça para baixo.
_Vejam só o que o preto anda a
meter na cabeça desta criança.
(...)
Fosse por desdenho dos grandes ou por
glória dos pequenos, a verdade é que, aos pouco-poucos, o passarinheiro foi
virando assunto no bairro do cimento. Sua presença foi enchendo durações,
insuspeitos vazios. Conforme dele se comprava, as casas mais se repletavam de
doces cantos. Aquela música se estranhava nos moradores, mostrando que aquele
bairro não pertencia àquela terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os
residentes, estrangeirando-lhes? Ou culpado seria aquele negro, sacana, que se
arrogava a existir, ignorante dos seus deveres de raça? O comerciante devia
saber que seus passos descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se
inquietavam com aquela desobediência, acusando o tempo. Sentiam ciúmes do
passado, a arrumação das criaturas pela sua aparência. O vendedor, assim
sobremisso, adiantava o mundo de outras compreensões. Até os meninos, por graça
de sua sedução, se esqueciam do comportamento. Eles se tornavam mais filhos da
rua que da casa. O passarinheiro se adentrara mesmo nos devaneios deles:
_Faz conta eu sou vosso tio.
As crianças emigravam de sua
condição, desdobrando-se em outras felizes existências. E todos se familiavam,
parentes aparentes.
_Tio? Já se viu chamar de tio a
um preto?
Os pais lhes queriam fechar o
sonho, sua pequena e infinita alma. Surgiu o mando: a rua vos está proibida,
vocês não saem mais. Correram-se as cortinas, as casas fecharam suas pálpebras.
Parecia a ordem já governava. Foi
quando surgiram as ocorrências. Portas e janelas se abriam sozinhas, móveis
apareciam revirados, gavetas trocadas.
Em casa dos Silvas:
_Quem abriu este armário?
(...)
Em casa dos Peixotos:
_Quem espalhou alpista na gaveta
dos documentos?
(...)
No lar do presidente do
município:
_Quem abriu a porta dos
pássaros?
(...)
No somado das ocorrências,
um geral alvoroço se instalou no bairro. Os colonos se reuniram para labutar em
decisão. Se juntaram em casa do pai de Tiago. O menino iludiu a cama, ficou na
porta escutando as graves ameaças. Nem esperou escutar a sentença. Lançou-se
pelo mato, rumo ao embondeiro. O velho lá estava ajeitando-se no calor de uma
fogueira.
_Eles vem aí, vêm-te buscar.
Tiago ofegava. O vendedor não se
desordenou: que já sabia, estava à espera. O menino se esforçava, nunca aquele
homem lhe tivera tanto valor.
_Foge, ainda dá tempo.
Mas o vendedor se confortava, em
sonolentidão. Sereno, entrou no tronco e ali se ademorou. Quando saiu já vinha
gravatado, de fato mesungueiro(2). (...)
_E porquê vestiste o fato?
Explicou: ele é que era natural,
rebento daquela terra.Devia de saber receber os visitantes. Lhe competia o
respeito, deveres de anfitrião.
_Agora, você vai, volta na sua
casa.
(...)
Barulhosos, os colonos foram
chegando. Cercaram o lugar. O miúdo fugiu, escondeu-se, ficou à espreita. Ele
viu o passarinheiro levantar-se, saudando os visitantes. Logo procederam
pancadas, chambocos, pontapés. O velho parecia nem sofrer, vegetável, não fora
o sangue. Amarram-lhe os pulsos, empurraram-lhe no caminho escuro. (...) O
menino, de pronto, se decidiu. Lançou-se nos matos, no encalço da comitiva.
(...)
A voz do passarinheiro lhe chegava, vinda de além-grades. Agora, podia ver o rosto
de seu amigo, o quanto sangue lhe cobria. Interroguem o gajo, espremam-no bem.
Era ordem dos colonos, antes de se retirarem. O guarda continenciou-se,
obediente. Mas nem ele sabia que segredos devia arrancar do velho. Que raivas
se comprovavam contra o vendedor ambulante? Agora, sozinho, o retrato do detido
lhe parecia isento de suspeita.
_Peço licença de tocar. É uma
música da sua terra, patrão.
O passarinheiro ajeitou a
harmónica, tentou soprar. Mas recuou da intenção com um esgar.
_Me bateram muito-muito na boca.
É muita pena, senão havia de tocar.
O polícia lhe desconfiou. A
gaita-de-beiços foi lançada pela janela, caindo junto do esconderijo de Tiago.
Ele apanhou o instrumento, juntou seus bocados. Aqueles pedaços lhe semelhavam
sua alma, carecida de mão que lhe fizesse inteira. O menino se enroscou,
aquecido em sua própria redondura. Enquanto embarcava no sono levou a muska à
boca e tocou como se fizesse o seu embalo. Dentro, quem sabe, o passarinheiro
escutasse aquele conforto?
Acordou num chilreino. Os
pássaros! (...) As portas estavam abertas, a prisão deserta. O vendedor não
deixara nem rasto, o lugar restava amnésico. Gritou pelo velho, responderam os
pássaros.
Decidiu voltar à árvore. Outro
paradeiro para ele já não existia. Nem rua nem casa: só o ventre do embondeiro.
(...) Entrou no tronco, guardou-se na distância de um tempo. Valia a pena
esperar pelo velho? No certo, ele se esfumara, fugido dos brancos. No enquanto,
ele voltou a soprar na muska. Foi-se embalando no ritmo, deixando de escutar o
mundo lá fora. Se guardasse a devida atenção, ele teria notado a chegada das
muitas vozes.
_O sacana do preto está dentro
da árvore.
Os passos da vingança cercavam o
embondeiro, pisando as flores.
_É o gajo mais a gaita. Toca,
cabrão, que já danças!
As tochas se chegaram ao tronco,
o fogo namorou as velhas cascas. Dentro, o menino desatara um sonho: seus
cabelos se figuravam pequenitas folhas, pernas e braços se madeiravam. Os
dedos, lenhosos, minhocavam a terra. (...) Foi quando Tiago sentiu a ferida das
labaredas, a sedução da cinza. Então, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou
inteiro para suas recentes raízes.
(1) Muska - nome que, em chissena, se dá à
gaita-de-beiços.
(2) Mesungueiro - de “mesungo”,
homem branco
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Imagem: fotografia tirada em Pemba, província de Cabo Delgado, Moçambique. Notem as proporções da árvore em relação a pessoa sentada a sua sombra, a extrema direita.
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Imagem: fotografia tirada em Pemba, província de Cabo Delgado, Moçambique. Notem as proporções da árvore em relação a pessoa sentada a sua sombra, a extrema direita.
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