quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Jovem, negra, pobre e analfabeta


Conheci Rosinha há aproximadamente 10 anos. Na época eu havia deixado o interior do estado de São Paulo e me mudado para a capital. Estava feliz por meu novo emprego, pela mudança de cidade y otras cositas más.

Depois de alguns meses, chegou Rosinha. Ela iria trabalhar na limpeza via "Frente de Trabalho". Não tinha carteira assinada e toda seguridade que esta nos dá, tais como férias, 13º salário, seguro desemprego, fundo de garantia... Se faltasse ao trabalho, ainda que por motivo de doença, não receberia a cesta básica mensal. Só tinha 40h semanais a serem trabalhadas, um salário mínimo (R$260,00 ou U$98,00, na época) e nossa sujeira nas salas, pátios, banheiros, cozinhas e afins. 


Mulher, jovem, negra e nordestina. Pensava que era dois ou três anos mais velha que eu. Mas era dois anos mais nova. Com vinte e poucos anos, já gerara quatro filhos. Morava com os três mais novos. O filho mais velho tinha ficado com os avós na terra natal. Sem qualificação para empregos formais, tanto ela quanto o marido recolhiam óleo para fazer sabão e vender. 


Analfabeta. Rosinha foi o adulto mais jovem que conheci que não sabia nem ler nem escrever. Sem nenhum tipo de deficiencia intelecutal, não podia frequentar o EJA Educação de Jovens e Adultos porque o marido não gostava que saísse à noite. Lamentava não poder ajudar seus filhos com as lições escolares. Mas seu sorriso era farto, ainda que tímido.


Após 12 meses de trabalho, seu contrato precário  não poderia ser renovado. A promessa de "qualificação profissional" para os trabalhadores da "Frente" não se cumpriu. Angustiada, nos deixou seu número de telefone para que a contatássemos para faxinas. Foi embora, fazer sabão.


Faxineira. Começou a fazer limpeza esporádica na casas dos trabalhadores que conheceu no serviço da "Frente". Indicada para trabalhar na cidade vizinha, desceu no ponto errado e não conseguiu chegar ao trabalho. Olhava as placas nas ruas. Via mas não lia. Com medo de se perder ainda mais, voltou para casa. Não ganhou pela faxina e gastou o dinheiro com o ônibus.


Beneficiária do Bolsa Família, Rosinha era prova viva do quanto esse recurso faz diferença na vida das pessoas. Se existem pessoas corruptas que recebem a bolsa sem a devida necessidade, pessoas com sérias dificuldades para sobreviver não podem ficar deassistidas. Que se fiscalize mais. Ponto!


Trabalhando também em minha casa, ficamos mais próximas. Minha priminha era da mesma idade que sua filha mais velha. O óleo que minha família usava, quando era reservado para que seu esposo fizesse a retirada e transformasse em sabão. Troquei de aparelho celular e ele se interessou pelo aparelho antigo, daqueles que ainda vinham com um número fixo, sem chip. Seguindo o lema "Reduzir, Reutilizar e Reciclar".


Madrugada de 2008, meu antigo número começa a chamar. Havia se passado dois anos. _Janaína, vá pra delegacia ver Rosinha _ falou uma voz masculina._Quem está falando? Por que Rosinha está na delegacia?_Aqui é o marido da Rosinha. Ela precisa de você. _ E desligou.


Liguei para o número de Rosinha diversas vezes, ninguém atendeu. Depois um número desconhecido me chamava, para que eu explicasse o que queria com Rosinha àquela hora. Era da delegacia.


Troquei de roupa e me dirigi ao 1ºDP da cidade. Era minha segunda vez em uma delegacia. A primeira foi para tirar meu documento de identidade, em minha cidade do “interior do interior” do Paraná. Situação bem distinta desta. Não sabendo como proceder, me sentei na esperança de ser chamada para algum atendimento. Como não aconteceu, me dirigi a um dos funcionários da delegacia, explicando mais ou menos o ocorrido. Me mandaram entrar em uma sala.


Na sala estava a delegada. Mulher também jovem em seu primeiro plantão. Atrapalhada, relatou que não esperava caso tão complexo em seu primeiro dia. Ela me falou que Rosinha estava detida para averiguação. A polícia foi chamada durante a noite pelos vizinhos devido a uma briga do casal. Ao chegar no local, a polícia tomou conhecimento de que o motivo da briga era o estupro recorrente da filha mais velha pelo pai. O marido de Rosinha fugiu e ela foi detida para averiguarem se ela era cúmplice do crime.


Expliquei que era amiga de Rosinha. Que tinha ido a delegacia devido a um telefonema de seu marido, dizendo que ela estava na delegacia precisando de mim. Tive que falar diversas vezes que não sabia onde ele estava. Já Rosinha, estava chorando no canto da sala, sentada em uma cadeira, com os dois filhos menores a seu redor. Só balbuciava "eu não sabia, eu não sabia" entre um soluço e outro. A filha, vítima dos estupros, tinha sido levada para o hospital para fazer exames para “fins legais”.


Após encontrado, seu marido foi preso imediatamente pois era procurado por um outro crime cometido no passado. Descobriu-se que os abusos começaram quando a mãe começou a trabalhar fora, na "Frente". O pai passava as tardes cuidando dos filhos e abusava da mais velha, que na época tinha 10 anos. O segredo era mantido por inúmeros mecanismos, desde dar doces para as crianças menores ficarem brincando do lado de fora do barraco enquanto o abuso ocorria, "mimar" a filha abusada de forma a manipula a manutenção do segredo, até induzir a menina a tomar contraceptivos.


Sem o ex-marido impedindo,  Rosinha finalmente começou a frequentar o EJA, mas não conseguiu dar continuidade. Teve que vender o barraco onde morava porque o ex exigia sua parte. Recebeu inúmeros telefonemas do sistema penitenciário até convencer a assitente social do local que não era mais conjuge do detento e que não tinha interesse em ajudá-lo no que quer que fosse. Com os filhos abrigados na cidade vizinha, aprendeu na marra a se locomover por lá, indo visitá-los e às audiências até que lhe restituíram a guarda.


Jamais pensou em voltar com aquele que lhe trouxe tanta tristeza e promoveu estragos imensos em sua vida e na de seus filhos. Temia que ele voltasse ao convívio e abusasse da filha mais nova, que agora chegava a idade de 10 anos. Certa vez a perguntei sobre quando passou a viver com o pai das crianças. E a resposta foi: "_Aos 13 anos"! E ele era, no mínimo, 20 anos mais velho que ela.


Tudo o que aconteceu após a cena da delegacia, foi ao longo do ano de 2009, quando morei em Moçambique. De lá, pouco pude ajudar. Quando voltei, em 2010, Rosinha ainda estava sem trabalho fixo e voltou a fazer faxina em minha casa. Era monitorada pelo conselho tutelar no cuidado com os filhos. A maior dificuldade é que a filha mais velha não queria frequentar a escola. Mentia, saía escondida nas madrugadas, a maltratava e, por fim, engravidou com 14 anos. Quem queria assumir a criança como filho era o novo namorado, que foi preso por assalto durante a gravidez da adolescente. 


No final de 2011, quando foi morar no litoral, Rosinha conheceu o mar. Com 30 e poucos anos, morando há 60km da praia, nunca tinha posto os pés na água salgada. Não foi a passeio, mas sim me ajudar com a limpeza da nova residência. Porém, antes do sol se pôr nos dirigimos pra orla. Espero que um dia ela possa ir ao mar apenas à passeio.Em 2012, quando assumi a coordenação de um centro de refêrencia para mulheres em situação de violência, reencontrei aquela delegada. Agora ela era responsável por uma DDM Delegacia de Defesa da Mulher. Não se lembrava de mim, mas depois pudemos falar sobre aquele final de 2008, tão marcante em nossas vidas. A delegada entrou pra relação das pessoas queridas.


Escrevo essa lembrança porque nesta semana, ao consultar uma operadora de serviços telefônicos, fui informada que tenho uma linha que está sem uso desde 2009. Achei que era confusão típica dessas empresas, mas depois rememorei os fatos. A linha é do antigo celular, com número fixo, que já apareceu nesta história.


Preciso cancelar a linha telefônica  mas não cancelarei a lembrança por ela desencadeada, pois ainda temos muito que lutar por um mundo mais justo e igualitário; onde Rosinhas tenham condições de vida mais digna com condições para desfrutar das oportunidades que lhes surgirem; onde meninos e meninas não sejam abusados sexualmente, já que os principais abusadores são seus pais, padrastos e outros parentes próximos; onde as mulheres tenham direito a ir e vir, sem se sentirem intimidadas por seus companheiros ou desconhecidos na rua; onde homens e mulheres tenham acesso a trabalho digno e benefícios de redistribuição de renda, quando necessários; onde homens e mulheres que não passem por tanta dificuldade com renda, violência e opressão possam se solidarizar por um mundo melhor e mais justo para todas e todos.


Fonte da Imagem: Grif Maçãs Podres 



Um comentário:

António Je. Batalha disse...

Estou alegre por encontrar blogs como o seu, ao ler algumas coisas,
reparei que tem aqui um bom blog, feito com carinho,
Posso dizer que gostei do que li e desde já quero dar-lhe os parabéns,
decerto que virei aqui mais vezes.
Sou António Batalha.
Muita paz.
PS.Se desejar visite O Peregrino E Servo, e se o desejar
siga, mas só se gostar, eu vou retribuir seguindo também o seu.